TRABALHADORES DE APLICATIVOS E A PANDEMIA

As condições de trabalho dos entregadores de aplicativo são desumanas. Isso é um fato que nem o mais emocionado dos liberais consegue contrariar. O monopólio formado pelas plataformas de delivery mostram o que há de mais avançado no capitalismo, do ponto de vista da burguesia. Não é só a exploração extrema da força física do trabalhador, mas também o aproveitamento das suas últimas reservas de equilíbrio psicológico e emocional. Para os que são religiosos, não há dúvida de que nem a alma se salva.

Como todo trabalhador aprende desde que nasce, sempre pode piorar. Na atual crise econômica e sanitária, podemos ver mais uma vez quem precisa bancar os prejuízos. Com o desemprego em disparada e a impossibilidade de se realizar muitos dos trabalhos informais que antes garantiam a sobrevivência de grande partes das famílias brasileiras, o exército de mão de obra disponível para essas empresas aumentou imensamente. Sabendo disso, a burguesia conseguiu piorar o que já era horrível. Não bastasse não providenciar condições de higiene e saúde aos seus trabalhadores, o pagamento foi diminuído. As tarifas dinâmicas da UberEats, por exemplo, que antes chegavam a 2,5 nos fins de semana, agora praticamente não existem. Qualquer entrega que passe de cinco reais para um entregador de bicicleta já é comemorada. Jornada de trabalho é um termo que se tornou uma fantasia utópica. Turnos de 12 horas de trabalho diário são o padrão. Fora disso, temos aqueles que nem sequer conseguem voltar pra casa entre o período de terminar de entregar a janta e começar a entregar o café da manhã. Fome, frio, chuva e sono são companheiros tão fiéis que muitas vezes nem se percebe mais.

Vale aqui pensarmos em como chegamos nessa situação. Quando surgiram, os aplicativos de delivery não distribuíram excelentes vantagens só para os clientes. Aqueles que iniciavam na plataforma, tinham ganhos reais elevados. Motoboys que antes trabalhavam de forma fixa para um ou poucos restaurantes migraram para plataformas digitais. Trabalhadores com empregos mal remunerados decidiram se tornar entregadores, ao verem que os ganhos seriam muito maiores. Desempregados encontraram uma chance de ter qualidade de vida. As gigantes tecnológicas também fizeram ser vantajoso para os restaurantes, que muitas vezes migraram uma enorme parte do seu negócio para o delivery devido à nova onda. E assim, em pouco tempo, se estabeleceu o monopólio. Com os trabalhadores e restaurantes totalmente dependentes da plataforma e um capital bilionário, as poucas empresas do setor passaram a poder fazer o que quisessem e controlar o mercado a vontade, sem restrições legais, trabalhistas e organizativas.

Depois de pensar em como estamos e como chegamos aqui, precisamos pensar em como resolver o problema. Com a crescente degradação das condições, cresce também a resistência. Algumas greves já foram tentadas pela categoria no passado. Devido a dispersão dos profissionais e à doutrinação liberal que ficou de resquício da época de surgimento das plataformas, não foi possível grande organização nesse sentido. Agora, porém, o isolamento social traz mais visibilidade ao papel dos entregadores. De forma quase inédita, entregadores em São Paulo se reúnem para protestar não só contra o aplicativo mas contra o governo. Também se está planejando uma grande greve para o dia 1º de julho, desta vez com cobertura da imprensa e conhecimento da sociedade em geral. As principais reivindicações são o aumento das taxas e o fim dos bloqueios arbitrários que sofrem alguns trabalhadores que desagradam a empresa.

Mas como pensar em uma solução definitiva? Surgiu recentemente uma idéia, perpetuada entre pessoas que genuinamente querem ajudar a categoria, de se construir uma plataforma administrada pelos entregadores, em que todo lucro iria para os mesmos. É uma coisa que pode funcionar em pequena escala e que com certeza melhoraria muito a qualidade do trabalho se aplicada em grande escala. É uma ideia genuína e válida, com a clara intenção de ajudar os entregadores. Porém precisamos analisar nossa realidade concreta. Não podemos pensar que a solução para a exploração passa pela concorrência do trabalhador com a burguesia no campo econômico. Precisamos combater nossa própria ingenuidade de pensar que existe uma concorrência livre e honesta. Empresas como Ifood e Uber possuem o poder do Estado, reservas bilionárias e um exército de desempregados imenso para que possa esmagar qualquer empresa formada por trabalhadores que tentar lhe fazer frente. Essas empresas podem, por exemplo, financiar campanhas de boicote junto aos restaurantes, fornecer promoções absurdas aos clientes e subir as taxas de entrega temporariamente para atrair os mais incertos do movimento e os desempregados. Para que lhes faltasse mão de obra, como seria o adequado, seria preciso uma organização imensa por parte dos trabalhadores. Porém, se tivéssemos essa organização, não estaríamos tendo essa discussão, mas sim discussões sobre como tomaremos o Estado.

Muito mais do que criarmos aparelhos de concorrência, precisamos nos organizar cada vez mais para acabarmos com o aparelho de exploração que eles criaram. As lutas que surgem e crescem cada vez mais, por mais que estejam ainda no âmbito econômico da categoria e não tenham se livrado da doutrinação do pensamento liberal, são um excelente início. Vamos lutar por melhores pagamentos e por mais transparência. Mas não vamos parar aí. Vamos lutar por assistência e equipamentos. E vamos avançar. Vamos lutar por regulação profissional, por vínculo empregatício, pela estatização das empresas. Vamos lutar para levar a consciência de classe para cada entregador, cada profissional precarizado. A partir daí, a nossa luta não vai ser mais apenas dos entregadores. A nossa luta vai ser ao lado de todos os outros trabalhadores explorados.

Por mais que todos nós gostemos de soluções fáceis, não podemos acreditar nelas. A solução definitiva e duradoura para o problema dos entregadores de aplicativo não é possível apenas dentro da própria classe. As empresas que controlam o setor sabem disso e é por isso que querem vender a ideia de que os entregadores são empreendedores, não trabalhadores. É porque a saída está no conjunto da classe operária, na elevação geral da consciência. A única saída real e definitiva está na tomada do poder pelos trabalhadores e assim a possibilidade de derrubar os monopólios que nos oprimem. É claro, porém, que o profissional que trabalha mais de 12 horas por dia e ainda assim não consegue pagar suas contas não pode esperar até toda classe estar pronta. Até lá, é óbvio e justo que lutemos por melhores condições de trabalho. Que lutemos para ter comida na mesa e saúde para trabalhar. Mas que acima de tudo, a gente continue avançando, para não lutar só pela comida de amanhã, mas pela certeza de que jamais faltará comida de novo.

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