Reunificar o campo popular e seguir pela esquerda

(Photo by MICHAEL DANTAS / AFP)

O 7 de setembro de Bolsonaro saiu pela culatra, se não em número de participantes, com certeza em resultado político e tático. Se é verdade que ainda é grande o número de pessoas que segue Bolsonaro e que uma boa parcela delas foi às ruas no último dia 7 de setembro, é fato também que os organizadores do 7 de setembro pró Bolsonaro esperavam muito mais gente. É possível dizer que usaram todo o potencial possível em termos de propaganda, mobilizaram todos os setores econômicos, sociais, militares e religiosos que poderiam engajar, gastaram muito dinheiro e deixaram à solta a criatividade doentia na produção de notícias e expectativas falsas. E a participação ficou bem abaixo do que esperavam. Por uma razão óbvia: diminui rapidamente a proporção de pessoas da sociedade que ainda têm segurança política nas táticas apontadas por Bolsonaro e seus seguidores.

Mas o fracasso de Bolsonaro não esteve na quantidade de pessoas que foi às ruas manifestar, o “eu autorizo” que ele tinha pedido para promover sobre os outros poderes do Estado, porque, como falamos, uma significativa quantidade de pessoas foi às ruas apoiar Bolsonaro em 7 de setembro. O fracasso maior foi a tática. Toda a mobilização das semanas anteriores estava centrada na promessa de que, “a pedido do povo”, Bolsonaro afastaria da frente de seu governo todos os entraves institucionais que impedem a realização de 100% de seu programa, qual seja: impor o voto de papel, anular a CPI do Senado, liberar por completo a destruição do meio ambiente, invadir todas as terras indígenas, armar os seus seguidores, “legalizar” o direito de matar para policiais e capangas dos ricos… Estavam nisto com Bolsonaro os setores mais atrasados do latifúndio, a indústria de armas e munições, empresários sonegadores, uma boa proporção de pequenos e médios proprietários rurais com soberba de fazendeiros, muitos policiais militares e outros setores armados, uma minoria dos caminhoneiros (pequenas e médias empresas transportadoras alinhadas ideologicamente e caminhoneiros autônomos contratados para o ato), parte da pequena burguesia urbana e parte da classe média. Povo pobre, muito pouco. Os evangélicos, mesmo com forte convocação de muitos pastores, não apareceram ostensivamente.

O movimento deu errado porque a tática não permitia que desse certo. Esses setores econômicos, marginais e minoritários dentro da classe dominante, jamais conseguiriam impor suas vontades contra os interesses do agronegócio exportador de alimentos, dos monopólios de exportação de minérios, da indústria ainda existente no Brasil (mesmo que em processo de desmonte), do capital financeiro. Destes setores mais dinâmicos da economia, o que tem aparecido há meses são notas públicas que, se não pedem a cabeça de Bolsonaro, deixam claro que estão descontentes com os tensionamentos que prejudicam os negócios. E foi justamente por esse caminho desaconselhado pelo grande capital que Bolsonaro e suas tropas de choque tentaram marchar. Erraram porque lhes falta orientação sobre economia, sobre política, sobre filosofia, sobre matemática, sobre bom senso. Aliás, o que lhes sobra em arrogância e salivação, lhes falta em capacidade de pensar direito. O presidente da república construindo movimento de trancamento da atividade econômica porque quer apoio para fechar o Supremo e mandar ainda mais no Congresso é algo que tem zero por cento de chance de dar certo. Isso seria, como foi, de fato e literalmente, um “auto-golpe”, ou seja, um tiro no próprio pé.

O Estado autocrático brasileiro está a serviço do bloco de poder econômico, formado pelos monopólios empresariais, pelo latifúndio agroexportador, pelo capital financeiro em sua vinculação umbilical e indissociável com o imperialismo. Não está a serviço de Bolsonaro e seus seguidores, mesmo que tenham também um importante poder econômico e político. As Forças Armadas e todas as polícias fazem parte deste mesmo Estado autocrático, e, como as outras instituições, elas seguem à classe dominante em seu conjunto, e não a uma pequena e marginal parcela da classe dominante. Bolsonaro nunca entendeu isso, e parece que se cercou de gente que também não entende, ou não quer entender. Mesmo que a maioria dos policiais militares tivesse vontade de acompanhar Bolsonaro até o fundo do poço, as instituições policiais não iriam porque as Forças Armadas não estão separadas da classe economicamente dominante. 

Evidente que as Forças Armadas têm poder, mas elas não operam à revelia das classes sociais dominantes na sociedade. Em 1964, as classes dominantes locais e o imperialismo pediram para as Forças Armadas darem o golpe e governaram em conjunto com representantes empresariais. Em 2016, as classes dominantes, aproveitando uma conjuntura mundial de crescimento da ultradireita  que recrudesceu temporariamente as agressões imperialistas também na América Latina, impuseram um golpe que derrubou o governo Dilma através do Congresso Nacional, com rito aprovado pelo Supremo Tribunal Federal. Já naquele período, as Forças Armadas lavaram as mãos e, embora com arroubos golpistas por alguns de seus membros, limitaram-se a dissimular uma postura de manutenção das garantias constitucionais. Bolsonaro tem essa conjugação de forças para tocar em frente a pauta econômica que interessa ao conjunto da classe dominante, mas não tem essa conjugação de forças em prol das suas taras totalitárias. Um “lockout” dos transportadores de cargas, se mantido por uma semana, prejudicaria os setores econômicos dominantes, incluindo a exportação de alimentos e minérios, derrubaria os negócios na bolsa de valores, elevaria o dólar, traria muito prejuízo aos setores do grande capital e ainda mais sofrimento para o povo. Bolsonaro seria derrubado em consequência do próprio movimento que instigou.

Por isso a aparição repentina de Michel Temer. Mais do que escrever aquela cartinha minguada (para parecer do Bolsonaro, precisava ser medíocre mesmo), mais do que salvar o governo Bolsonaro, mais do que esfriar a tensão entre Bolsonaro e o Supremo, mais do que “salvar a democracia”, Michel Temer foi o sujeito usado pela classe dominante para salvar os negócios e os interesses dela, ou seja, dos patrões. A crise política provocada por Bolsonaro tinha paralisado o Congresso Nacional, e isso inviabilizaria a aprovação da PEC 32 (da contrarreforma administrativa) prevista para este mês, iria prejudicar a continuidade das privatizações, traria prejuízos ao comércio exterior, paralisaria a produção no país… Os partidos políticos, mesmo os de direita, seriam forçados a adotar posição pelo impeachment de Bolsonaro, e isso também paralisaria a política de desmonte dos direitos e do patrimônio público, pelo menos pelos próximos dois meses. Temer veio em nome dos interesses do grande capital para fazer mais um acordo por cima, em benefício dos interesses das classes dominantes e do seu Estado autocrático. Bolsonaro foi “convencido” (e era isso ou seria tirado do cargo) a pedir o fim dos bloqueios das rodovias, a pedir trégua ao STF, e a ficar quieto. E já temos a impressionante marca de mais de uma semana sem uma fala desastrosa por parte do presidente. Evidente que é ingenuidade imaginar que ele vai conseguir se manter quieto por muito tempo. A tentativa de golpe de Bolsonaro contra o Supremo e contra o Congresso Nacional não durou mais que 48 horas. Ele teve que pedir para seus seguidores recuarem. Por mais que possam criar umas tantas narrativas fantasiosas para este fato, é incontestável que Bolsonaro perdeu outros tantos apoiadores por essa inconsequência e covardia. As classes dominantes seguem no controle, inclusive para jantares e folguedos onde ironizam as extravagâncias de Bolsonaro.

Um registro necessário é que o campo democrático e popular, apesar do terrorismo da extrema direita e não só deles, foi às ruas no 7 de setembro com um número considerável de manifestantes, em atos que passaram muito de simbólicos,  levando as bandeiras já tradicionais do Grito do Excluídos e também mantendo a Campanha Fora Bolsonaro. Mesmo que no dia 7 de setembro o campo popular tenha tido menos gente na rua do que a extrema direita, está claro que a vitória política ficou com o campo popular, porque manteve suas posições e não precisou recuar nem na política e nem na tática. 

Quem apostou no esvaziamento do movimento popular no dia 7 de setembro para tentar fortalecer a manifestação chamada pelos movimentos de direita MBL e Vem Pra Rua cometeu um erro bastante grave, tanto político quanto tático. O dia 12 de setembro, da direita chamada de liberal com adesão de setores do campo popular, foi um retumbante fracasso, o menor ato contra o governo Bolsonaro realizado neste ano. Este fato deixa claro que persiste na conjuntura brasileira a inviabilidade da chamada “terceira via”, ou de um hipotético “centro político”. Faz muito tempo que a sociedade brasileira está polarizada entre o campo democrático e popular, comumente chamado de esquerda, e a extrema direita, que nos últimos anos está aglutinada no bolsonarismo.

As forças do campo democrático e popular, um largo espectro político-ideológico que vai desde posições reformistas bastante tímidas, passando por posições mais radicais do reformismo, até as forças de esquerda que adotam estratégia socialista, estão com a complexa tarefa de recompor a relação de unidade política contra a pauta econômica anti-social que é defendida tanto pela extrema direita bolsonarista quanto pela direita chamada de liberal. O pacto de direita costurado por Michel Temer em nome da classe dominante deixa claro que, pelo menos por mais um período, a direita inteira seguirá unida no Congresso Nacional, com respaldo do Supremo Tribunal Federal, votando contra os direitos sociais e trabalhistas e destruindo o patrimônio público construído pela classe trabalhadora ao longo dos últimos 80 anos. O espaço para a tal “unidade de ação” com a direita para tirar Bolsonaro do governo fica reduzido na medida em que a classe dominante faz perfilar todos os partidos de direita para seguir impondo o seu projeto anti-povo. A prioridade da direita está na pauta econômica e não no impeachment de Bolsonaro, pelo menos por enquanto.

Todo o campo democrático e popular precisa estar unido contra a PEC 32, contra o marco temporal nas terras indígenas, contra a privatização dos Correios e da Eletrobras, em defesa das florestas, na denúncia da carestia, da miséria e da fome. Precisa se reunificar também na Campanha Fora Bolsonaro para massificar as mobilizações do dia 2 de outubro. É de fundamental importância que no dia 2 de outubro façamos a maior manifestação popular que já houve pela derrubada do governo Bolsonaro, e que a este movimento consigamos imprimir nossa pauta em defesa dos direitos, do patrimônio público e do meio ambiente, para que a Campanha Fora Bolsonaro seja também a afirmação do nosso conteúdo popular e de classe. É fundamental que as pretensões eleitorais de todos os partidos e lideranças, embora legítimas, sejam deixadas para o ano que vem. Neste momento, é preciso reunificar o movimento, investir nossas energias militantes e recursos disponíveis para garantir o máximo de povo na rua no dia 2 de outubro. Esta é a condição para pôr fim ao governo Bolsonaro e para retomar a hegemonia política para os setores populares e para a classe trabalhadora.

16 de setembro de 2021.
DN da Unidade Comunista Brasileira – UCB

 

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