Não existe Partido Militar – e as Polícias não vão dar Golpe

por Amauri Soares, Direção Nacional da UCB

Os militares brasileiros, como na maioria dos países da América Latina (assim como na África e na maior parte da Ásia), têm um histórico de participação protagonista em golpes de Estado, diferente do que acontece na Europa e na América do Norte. Razões econômicas, sociais e políticas seculares podem nos levar a uma explicação pelo menos aproximada dos motivos para essa diferença de atitude entre os militares dos países desenvolvidos e os militares dos países subdesenvolvidos. Mas esta maior tendência a participar como agente de força em golpes de Estado não faz dos militares dos países de capitalismo retardatário uma classe à parte, com autonomia em relação à classe dominante do seu próprio país, em sua dependência e subordinação ao imperialismo. Parece evidente que as instituições militares dos países subordinados ao imperialismo se portam de forma mais ostensiva em relação às outras instituições do Estado, e uma explicação possível para isso (dentre outras) é que, dado o grau de exploração do povo trabalhador e de injustiça social nestes países, a classe dominante interna e os monopólios dos países imperialistas sintam a necessidade de manter a ameaça permanente e de executar maior repressão contra a maioria do povo. 

Necessário evidenciar também que seria uma temerária ilusão pensar que os militares brasileiros têm uma tendência a ficar com a legalidade constitucional em qualquer circunstância. Uma olhada rápida sobre a história republicana brasileira mostra o contrário, inclusive nos últimos anos. Ainda mais fora de contexto seria imaginar setores significativos das cúpulas militares alinhados com posições democráticas e ou de esquerda. Isso até houve no Brasil, mas passou a ser cassado de forma sistemática a partir do começo da guerra fria, em 1947, e sofreu um golpe definitivo em 1964. O golpe de 31 de março de 1964 cassou (e caçou) os militares defensores de qualquer projeto nacional-popular, democrático ou de esquerda. Não estamos negando a possibilidade de haver alguns militares que se inclinem para a esquerda, mas é muito improvável que estes consigam avançar na carreira. Nas últimas décadas é impensável ter um general brasileiro defensor do socialismo, porque dificilmente alguém com inclinações à esquerda será incorporado nas academias militares, e, se entrar e conseguir passar de cadete, não chegará a general. Se a história nos provar o contrário, será este um caso de raríssima exceção. 

Saltando para a realidade brasileira das últimas semanas, a análise fica mais complexa, e mesmo experientes dirigentes políticos e renomados intelectuais acabam cometendo erros, em duas direções opostas: uns afirmam que existe um “partido militar”, que os militares estão se preparando para um golpe em favor de Bolsonaro, que, negando-se o exército, as polícias (especialmente as PMs) estarão sendo arrastadas para ajudar Bolsonaro a dar um golpe. Por outro lado, os que alegam que as cúpulas militares não permitirão a politização dos quartéis, que a ordem constitucional está garantida pelo compromisso dos generais da ativa. Diversas nuances desses dois tipos de análises povoam as redes sociais e mesmo as páginas de jornais e revistas. Pior ainda seria ter a ilusão de que os militares brasileiros, agora e para sempre, serão fiéis defensores da vontade popular manifestada nas urnas. Ninguém na esquerda alega isso de forma direta, mas o comportamento político indica que a maioria da esquerda vive nessa ilusão, ou tenta se livrar da ameaça apelando para a compaixão, para o subjetivismo argumentativo em defesa de um Estado que não tenha forças armadas ameaçando a sociedade, ou a maior parte dela.

Consideramos que as avaliações expostas no parágrafo anterior, com suas respectivas nuances, estão imprecisas, quando não erradas em sentido absoluto. Se as instituições do Estado são criadas e mantidas conforme os interesses das classes economicamente dominantes (podendo mudar parcialmente conforme haja pressão popular com força capaz de arrancar mudanças), por qual razão haveríamos de achar que com as instituições militares seria diferente? Por mais que exista na realidade um grande estoque de corporativismo e de espírito de auto proteção, nenhuma instituição do Estado existe por si só. Toda burocracia ensimesmada acaba ruindo em pouco tempo, em décadas no máximo. Ou seja, ou as instituições guardam relação de interesse, funcionalidade e utilidade em relação ao poder derivante da correlação de forças existente na sociedade civil, ou elas ficam esquecidas em um canto, até serem substituídas por outras instituições. Para ilustrar a afirmação deste parágrafo, parece didático dizer que os crimes da ditadura brasileira não foram investigados e punidos não só porque existe o corporativismo dos militares, mas também porque a classe dominante brasileira, em subordinação ao imperialismo dos Estados Unidos, promoveu e financiou o golpe de 1964, assim como foi cúmplice do AI-5 e de todos os crimes. Na correlação de forças entre defensores da ditadura e forças democráticas, seja na lei da Anistia de 1979, seja no processo Constituinte (1986-1988), a maioria do Congresso Nacional (que era também Assembleia Constituinte) colocou uma pedra sobre os crimes da ditadura. Evidente que isso aconteceu assim porque essa era a vontade da classe economicamente dominante, que também não queria ver o nome de vários de seus ícones implicados no financiamento da prática de torturas e assassinatos. A tese de que “os militares fizeram” numa conjuntura de “guerra suja” foi conveniente também para banqueiros, barões da indústria e ruralistas. Noutros países do continente, as forças democráticas tiveram mais força, e conseguiram punir alguns dos criminosos de suas ditaduras. 

Todas as forças militares de todos os lugares do mundo têm objetivos permanentes de preservar o poder nas mãos das classes dominantes dos respectivos países, claro, em sintonia com seus interesses em termos de relações internacionais. Preservar o poder da classe dominante de uma formação social que se constitui como Estado soberano (com maior ou menor soberania relativa) e que se relaciona com os demais Estados do mundo num complexo conjunto de relações de interesses é o objetivo das forças armadas em qualquer parte do mundo. Nos países imperialistas (que quase sempre coincide com os países que inauguraram por revolução social a era do capitalismo), o poder do Estado deixa o trabalho de polícia a cargo de outras instituições, enquanto as forças armadas propriamente ditas se ocupam de ser uma espécie de “polícia do mundo”, indo impor o interesse da classe dominante do país imperialista em outras partes do mundo. Mas sempre conforme o interesse das classes economicamente dominantes nos seus respectivos países. Nos países de capitalismo retardatário (que quase sempre coincide com os países dependentes e subordinados ao imperialismo), o objetivo de preservação do território e da soberania só existe na relação com os países da região, também subdesenvolvidos. A preocupação principal das forças armadas em todos os países da América Latina é a preservação da ordem interna. E o fazem conforme os interesses das classes dominantes locais em sua relação de subordinação às potências imperialistas. Por essa razão, também as instituições militares dos países subordinados ao imperialismo se alinham em termos ideológicos e institucionais às forças armadas dos países imperialistas dominantes na região. E também por esta razão as forças armadas dos países não desenvolvidos acabam tendo uma postura mais ostensiva em termos políticos na relação com a própria sociedade. Bolsonaro afirmou em Chapecó no último dia 7 de abril que tem consultado os comandantes das Forças Armadas se suas forças têm condições de conter levantes populares provocados pelo desespero do desemprego e da fome. Ao invés de pensar em evitar a fome, o governo pensa em reforçar a repressão contra os famintos! Embora nenhum grande burguês ande dizendo isso publicamente, a classe dominante brasileira, assim como a maioria da classe média, não se choca com esse tipo de afirmação. A frase dita por Bolsonaro nas entrelinhas dos argumentos contra o lockdown, ficou também nas entrelinhas das atenções de toda a imprensa presente no ato. 

Toda força armada tem objetivo político bem definido, seja na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos ou no Brasil. Constitui um erro pensar que em algum momento as forças armadas estarão fora da política, até porque, como disse Clausewitz, “a guerra é a continuação da política por outros meios”. O que chamam de não participar da política é não participar dos partidos políticos, proibição que colocaram na Constituição de 1988. O que chamam de não participar da política é não permitir a livre manifestação de pensamento das bases militares, para os quais a própria reivindicação salarial é legalmente considerada crime militar e transgressão disciplinar. A democracia nunca se estabeleceu nos quartéis, e nem mesmo os conceitos republicanos da revolução burguesa. Enquanto isso, as cúpulas militares fazem política quase o tempo todo. Desde jovens, comandando pequenas unidades em cidades do interior, os oficiais das forças armadas e das polícias vivem em reuniões, eventos, confraternizações e jantares com os representantes das classes dominantes locais, sejam rurais ou urbanas. Estas relações seguem e se aprofundam até o posto de oficial general, para os poucos que chegam lá. E os que chegaram ao último posto da carreira não o alcançaram sem fortes compromissos com ideias e práticas alinhadas com os interesses da classe dominante.

Se a maioria dos militares não se manifesta sobre os assuntos políticos é porque isso lhes é proibido legalmente. Já os integrantes das cúpulas militares não se manifestam porque precisam se manter funcionais para servir a qualquer tática ou a qualquer governo de interesse da classe dominante e, por essa mesma razão, eles mantêm as bases amordaçadas. Independente de quem seja o governo ou o partido que esteja governando, se ele se mantiver dentro da “ordem” econômica, social e política que interessa à classe dominante, ele terá respaldo das instituições militares, mesmo que haja simpatias e antipatias recíprocas nestas relações. Alguns generais são mais alinhados com a extrema direita, outros com a direita liberal e alguns até engolem o reformismo que não altere o rumo das relações sociais e não mexa nas instituições permanentes do Estado. Mas, no Brasil do pós 64, todos os generais são defensores da ordem estabelecida, e todos eles passaram por processos de formação cujo objetivo era alinhá-los com os princípios filosóficos e econômicos de interesse dos Estados Unidos, porque a dependência e subordinação da classe dominante brasileira ao imperialismo por certo foi construída também dentro das instituições militares. A Escola Superior de Guerra serve também para isso. Impossível dizer se apesar disso sobrou algum verniz de perspectiva pelo menos nacional-popular na consciência de pelo menos alguns oficiais superiores brasileiros. 

Tudo isso é um debate necessário para se chegar à conclusão que, na atual conjuntura (neste ano de 2021) não haverá golpe militar no Brasil. E não haverá porque a classe dominante brasileira não precisa que haja. Se tivesse necessidade, por certo esse golpe seria preparado, desde que não houvesse alternativa. Em 2016 houve um golpe no Brasil, e os generais o respaldaram, inclusive alguns deles tendo saído da habitual discrição dos generais. Foram suficientes algumas declarações via rede social de uns dois generais para indicar o rumo que as instituições militares estavam tomando, a maioria deles com passividade consciente. Hoje, mesmo aqueles dois falastrões estão calados, porque já perceberam que quem paga a banda está refletindo sobre a possibilidade de mandar mudar a música. A classe economicamente dominante no Brasil, em sua parceria subordinada aos monopólios imperialistas, neste momento, não tem motivos para dar ou autorizar golpe de extrema direita em favor da radicalização de Jair Bolsonaro ou do bolsonarismo. E os militares seguem seus patrões. Os monopólios privados, o agronegócio e o sistema financeiro, através de uma extensa rede de gerentes, pequenos investidores e formadores de opinião, também por meio de diversos partidos políticos, definem qual a tática mais adequada para seus interesses em cada conjuntura. Os próprios oficiais superiores fazem parte dessa extensa rede de ligação entre os interesses econômicos e as instituições do Estado. Logo, não são os militares que decidem por conta própria se vai ter golpe ou se não vai ter golpe.

Outra tese errada que alguns setores de esquerda têm levantado é a possibilidade de Bolsonaro usar as polícias, especialmente as polícias militares, para patrocinar um golpe de Estado, seja para aumentar seus poderes discricionários, seja para impedir o andamento de um processo de impeachment contra seu mandato. Dizem isso diante de algumas evidências de que as cúpulas das Forças Armadas têm rejeitado esse pedido de apoio por parte de Bolsonaro. Ou seja, se as Forças Armadas não concordam com o golpe, então Bolsonaro usará as polícias para fazê-lo, eis a forma de pensar de alguns setores da esquerda brasileira hoje. Naturalmente que Bolsonaro, seus filhos e todos os seguidores mais fanáticos gostariam muito de dar golpes, e vivem ameaçando que vão fazer. Aliás, existe toda uma agitação neste sentido, o tempo todo, usando os métodos mais sórdidos. Não tenhamos dúvidas de que muitos militares gostariam de ser chamados para ajudar Bolsonaro e seus filhos a patrocinarem tragédias ainda maiores do que já fazem em nosso país. E eles podem de fato provocar muita desgraça, inclusive em termos de perseguição política, coação, assassinatos de opositores, etc. Precisamos nos organizar para evitar que a militância do campo popular corra riscos que podem ser evitados. Mas as polícias ou parte de suas bases não darão golpe de Estado nesta conjuntura, pelos mesmos motivos que as Forças Armadas não o farão. Mas, para além de um golpe neste momento não ser uma tática de interesse da classe dominante, as polícias não farão golpe pró Bolsonaro à revelia das Forças Armadas porque as polícias militares, assim como os bombeiros militares, são “força auxiliar e reserva do exército”. E esta institucionalidade não será quebrada, porque seria necessário um comando centralizado de algum general (ou alguém que cumprisse essa função) para haver a operacionalização desse golpe. Do ponto de vista objetivo, não tem como, a não ser com a autorização e sob coordenação de uma força centralizada nacionalmente. E isso não poderia acontecer em hipótese alguma sem conhecimento do Exército, e se o Exército sabe e não toma providência é porque autorizou. E o Exército Brasileiro não cairia em tão profundo erro, pois perderia a razão de existir no mesmo momento. O golpe na Bolívia foi realizado por interesse dos monopólios privados e do imperialismo, com toda a direita unificada em favor do golpe, com as bases da extrema direita partindo para a violência tendo a conivência das polícias e das forças armadas. Depois de omitirem-se de cumprir seu dever e impedir os crimes hediondos que os golpistas praticaram, passaram a fazer manifestações a favor dos golpistas, a respaldar o governo golpista e a reprimir o movimento que defendia o governo derrubado. Não foi um golpe realizado pelas polícias mediante a recusa de participação no golpe por parte das forças armadas. Toda a direita, as polícias e os chefes das forças armadas estavam na execução do golpe, e o interesse era da classe economicamente dominante em sua subordinação aos interesses dos monopólios imperialistas. 

A classe dominante no Brasil não precisa, neste momento, dar golpe de Estado porque ela tem o controle tranquilo sobre todas as principais instituições do Estado, notadamente no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal. O próprio poder executivo está sob controle, não obstante a dificuldade do presidente da República, de alguns ministros e de apoiadores calarem a boca. Se alguém atrapalha os interesses da classe dominante é o próprio presidente e alguns de seus ministros, que, aliás, têm sido substituídos. Bolsonaro continua funcional para a classe dominante porque é com ele no governo que os poderes constituídos têm destruído a maior parte dos direitos trabalhistas e das garantias sociais que conquistamos em toda nossa história de lutas populares. Mas isso a classe dominante pode preservar por mais algum tempo mesmo se livrando de Bolsonaro, pois o vice-presidente é um general de extrema direita. Bolsonaro prejudica certos interesses econômicos da classe dominante quando coloca um ministro das relações exteriores que se comporta de forma absolutamente oposta ao que se deveria esperar de alguém naquele cargo. Provocar intrigas desnecessárias com o maior parceiro comercial do Brasil (China) foi a especialidade do ex-ministro Ernesto Araújo e de outros líderes bolsonaristas, incluindo os filhos do presidente. Além disso, a forma do governo enfrentar a pandemia tem provocado descontentamento entre setores da classe dominante, não porque eles têm preocupação com a saúde e com a vida do povo, mas porque o descontrole completo da pandemia pode prejudicar ou já tem prejudicado os negócios do Brasil no exterior, ou do exterior no Brasil.

Bolsonaro ainda não foi apeado do cargo de presidente porque ele é o nome de toda a direita que aparece com mais chance de ganhar a próxima eleição. E ele joga com isso, inclusive tentando constranger outros setores políticos e mesmo as instituições do Estado para ficarem ao lado dele. Mas forçar a barra não resolve o problema de Bolsonaro, porque, não existindo força popular capaz de ameaçar a ordem dominante, Bolsonaro pode se tornar desnecessário a qualquer momento. O andamento do processo de impeachment contra Bolsonaro está mais maduro do que estava há um mês, embora a opção da classe dominante ainda seja por anular o bolsonarismo dentro do próprio governo Bolsonaro. Claro que isso provoca alarde! O alarido é grande, e os setores reacionários ameaçados, tendo derrotas dentro do seu próprio governo, chamam pelas Forças Armadas que gostariam que existisse só para eles, recorrem à violência ou à ameaça dela, gritam por um “capitão América”. Mas gritam cada vez mais sozinhos. Não entendem que as  Forças Armadas seguem os interesses gerais da burguesia, e não o fetiche reacionário que não serve nem para vender soja.

Outro erro que aparece em setores da esquerda é pensar que o fenômeno Bolsonaro é obra dos generais, e isso se expressa em afirmar que as cúpulas militares construíram um governo à sua imagem e semelhança, para fazer um governo militar a partir do resultado eleitoral, ou que um certo “partido militar” tomou o governo que construiu para este fim. Bastante simplória essa análise, pois Bolsonaro sempre foi um incômodo aos oficiais superiores, que mal e mal o usaram algumas vezes por interesse meramente corporativo. Bolsonaro foi expulso do Exército como indigno do oficialato, ou seja, como uma vergonha para seus pares. Por decisão judicial, conseguiu ser reformado com proventos de capitão. E não se deve ter dúvidas de que os desaforos dos filhos de Bolsonaro provocam constrangimentos. Bolsonaro construiu apoio para chegar ao segundo turno das eleições de 2018 nas bases militares e policiais, politizando de forma oportunista a violência existente nos bairros pobres, prometendo armas e o direito de atirar para agricultores, caminhoneiros, taxistas, autônomos, pequenos comerciantes dos bairros, além de urdir com as cúpulas das igrejas neopentecostais para construir o pânico na moralidade cristã contra uma suposta “libertinagem” da esquerda e da social democracia. A maior parte da esquerda, da social democracia e dos liberais começou a olhar com alguma lenta atenção para o fenômeno político capitaneado por Bolsonaro quando ele bateu nos 14% de intenção de votos, já dentro do processo eleitoral de 2018. Os quatro anos anteriores de fermentação do fenômeno de extrema direita não foram observados nem mesmo pela “lente” dos institutos de pesquisa. Durante décadas, como deputado federal defensor dos assuntos corporativos dos militares em geral, Bolsonaro era recebido com a necessária diplomacia nos quartéis. A radicalização política de direita patrocinada pelo movimento golpista que usurpou parte da massa das “jornadas de junho” (2013) levou Bolsonaro a se tornar o fenômeno político que se tornou. Só depois de ser visto como candidato com chance de ir ao segundo turno das eleições de 2018 é que setores mais significativos das cúpulas militares passaram a considerá-lo como alternativa de poder. Naturalmente, as posições de Bolsonaro contra a Comissão da Verdade eram muito simpáticas aos oficiais e à maioria dos militares, mas mesmo assim os generais só se empolgaram com a candidatura dele quando já estava claro que tinha grandes chances de chegar à presidência da República. Ainda em 2016, diversas lideranças de extrema direita eram mais simpáticas a instigar o golpe ameaçado pelo então general da ativa Hamilton Mourão do que esperar 2018 pela hipótese que achavam improvável de Bolsonaro ser eleito. É possível dizer que a candidatura Bolsonaro se tornou totalmente aceita nas cúpulas militares apenas quando o general Mourão virou o candidato a vice, e daí já estamos falando dos meses anteriores às convenções partidárias, ou seja, maio/junho de 2018. Logo, não cabe a tese de que as cúpulas militares, um “partido militar” planejou a candidatura do Bolsonaro para eles, os militares, tomarem o poder. Temos que ter capacidade pelo menos para o exercício de “engenheiro de obra pronta”, pois basta olhar como a obra foi feita para perceber que não teve nenhum partido militar construindo essa obra. Muitos militares de base participaram da construção, como pedreiros e ajudantes. Os engenheiros foram todos aqueles que criminalizaram a política, endeusaram a operação Lava Jato, instigaram o golpe de 2016, porque eram contra as tímidas reformas feitas pelos governos do PT, porque seguiam o receio do imperialismo dos Estados Unidos em ver o Brasil se aliando mais e mais com a Rússia e com a China.

Por certo as Forças Armadas brasileiras estão a serviço da ordem constitucional vigente, para manter o predomínio da propriedade privada sobre as necessidades sociais, para garantir que o Brasil seguirá sendo um país capitalista, alinhado o máximo possível aos interesses do imperialismo, especialmente aquele radicado nos Estados Unidos da América. O bloco de poder dominante no Brasil, como analisava Luiz Carlos Prestes a partir da década de 1970, é formado pelos monopólios, pelo latifúndio e pelo imperialismo, e determina o rumo de todas as instituições do Estado, inclusive das Forças Armadas, evidente que por meio de uma complexa e longeva rede de relações institucionais e pessoais, envolvendo tecnocratas, parlamentares, procuradores, juízes, gerentes, especialistas que estão nas empresas, nos bancos, no parlamento, nos tribunais, nas forças armadas, na burocracia, nas universidades… As contradições começam a existir ou se tornar mais visíveis quando as forças populares conseguem arrancar algumas conquistas que não estejam em sintonia com a finalidade que o bloco de poder dominante quer das instituições. Estas contradições de interesse de classe é que podem levar a que as forças armadas sejam chamadas pelo bloco de poder dominante para aplicar algum golpe, ou para concordar com algum golpe. Em 1964, coube às Forças Armadas uma tarefa mais protagonista, mais ostensiva; em 2016, bastou concordar com o impeachment e mandar alguns recados para o STF, via redes sociais mesmo.

Este quadro não existe neste ano de 2021. O bloco de poder dominante tem agentes (operadores) alinhados perfeitamente com seus interesses na direção de todas as importantes instituições do Estado. Quem por vezes atrapalha é Bolsonaro. Mas o bloco de poder dominante segue sendo complacente com os crimes de Bolsonaro porque ele pode ser o único caminho capaz de evitar a vitória do campo democrático e popular na eleição de 2022. Até este momento, nenhum outro nome da direita ou da extrema direita chega perto do apoio que Bolsonaro tem, e este é um elemento muito importante, facilita até mesmo para a realização de um golpe se ele se tornar necessário em algum momento futuro. A preocupação precisa ser para o momento de transição do governo Bolsonaro, para quando for possível a derrota não só do presidente Jair Bolsonaro, mas também de todo o aparato de extrema direita hoje instalado no Brasil. Por isso, nossa tarefa jamais pode ficar restrita a somar condições para ganhar a próxima eleição! Nossa preocupação não deve ser com um golpe agora, pois ele não virá agora. Mas pode vir no futuro, se as forças populares não construírem capacidade política para enfrentá-lo quando começar a ser esboçado. São muitas as tarefas para este momento histórico: a reorganização das classes trabalhadoras; o enraizamento nas bases sociais vulneráveis do ponto de vista econômico e político; a construção de ferramentas organizativas capazes de sair das bolhas e dos controles que os monopólios de comunicação exercem (também via internet); propor táticas possíveis de serem realizadas; ir caminhando junto com o povo pobre de forma permanente e não somente quando se precisa dele… Realizar o trabalho didático de mostrar que toda riqueza é feita pela classe trabalhadora, e que, portanto, ela deve se preparar, ter um projeto de emancipação socialista da sociedade e construir os caminhos para tomar o poder.

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